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Palavras em tempo de pandemia #4 | O Olhar de Guerra

Já vos falei aqui do Furacão Irma e do susto que apanhei…

Foram dias “diferentes”, dias de angústia, dias imprecisos no que toca a certezas sobre o que vinha por aí.

Durante esses dias, alguns, mas que pareciam não acabar, aprendi muitas coisas.

Não lá, não a viver aquele momento. Eu sou daquelas pessoas que assume o medo.

O medo bloqueou-me qualquer capacidade de olhar para a “big picture” e tirar lições de vida…

O medo apenas me apertou com força o gatilho da sobrevivência e era só isso que eu queria.

Tão racional, quanto animal. Como as presas que fogem dos leões.

Afinal somos todos animais… uns mais humanizados que outros.

A aprendizagem veio depois, quando, finalmente, consegui dormir na minha cama sem acordar com medo…

Mas ainda lá, no meio daquele turbilhão conheci uma menina descalça com um vestido claro.

Ao contrário de mim, ela era de lá, estava com várias pessoas que não sabiam da sua família…

Os monossílabos dela eram totalmente indecifráveis, mas o olhar debaixo de uma franja mal cortada mostrava o medo.

Aquele medo do desconhecido, do amanhã, aquele medo de não ver mais os pais e irmãos…

De não ter a casa… de não poder brincar… de não encontrar os amigos…

Não sei se era isso, porque não consegui falar com ela… tentei, mas o medo dela e o meu, obrigaram-nos a comunicar apenas pelo olhar.

E o olhar dela é o olhar de guerra, é o olhar de quem está a deparar-se com o inimigo que lhe pode roubar tanto… e tudo.

As guerras são assim.… sejam elas onde foram… sejam elas de que natureza forem…

As guerras são sempre sinónimo de medo… de incerteza…

Mas uma guerra não dura para sempre e, apesar de não saber nada da Alice, espero que ela tenha encontrado a família.

E agora, a “nossa” guerra também é assim.… um dia vai passar.

Vai deixar as marcas que tem que deixar, como qualquer guerra.

Mas vai passar e, ainda que neste momento, não sejamos capazes de tirar aprendizagens, creio que no futuro vamos olhar para esta fase com outros olhos.

Pelo menos é o expectável… se passarmos por esta fase difusa, complexa e assustadora sem aprendermos nada…

Então nem para presa do leão servimos…

 

Eu não sei o nome dela, chamei-lhe Alice, porque gosto muito do nome e acho que ficava bem com a sua franja despenteada.

 

 

 

 

#TudoVaiPassar

#FicarEmCasa

 

Fotografia:

Créditos: Até já

Montego Bay, Jamaica

Setembro, 2017

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